Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador ,vinha a convite
de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os
colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores
programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto
de novos conhecimentos.
Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de
educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:
- Recomendo um passeio pelo nosso "Central Park", disse um
repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!
-Então estarei em
casa, repliquei ironicamente.
-Ai, desculpa, não
quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo de gente.
-A gente que ajudou
a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?
-Sim, quer dizer,
não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem
"farofa" no parque.
-Desculpe, mas outro
dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma
caixa de sapatos.
-Não me leve a mal,
não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito
de falar....
De fato, percebo que
não existe a intenção de magoar. São palavras ou expressões que , de tão
arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito.
Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como
tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.
Descobri que no Rio
de Janeiro, a pecha recai sobre os "Paraíba", que, aliás, podem ser
qualquer nordestino. Com ou sem a "Cabeça chata", outra denominação
usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.
Na Bahia, a herança
escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que segregam. Já testemunhei
pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como
se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.
Numa das conversas
que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de
se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma
marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os
brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:
"O teu cabelo não
nega, mulata
Porque és mulata na
cor
Mas como a cor não
pega, mulata
Mulata, quero o teu
amor".
"É
ofensivo", diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se
fosse doença? E as pessoas nunca percebem.
A expressão "pé
na cozinha", para designar a ascendência africana, é a mais comum de
todas, e também dita sem o menor constrangimento. É o retorno à mentalidade
escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.
O cronista Rubem
Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:
"Palavras não
são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os
fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra 'niger' para humilhar
os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:
'Eeny, meeny, miny,
moe, catch a niger by the toe'...que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão
do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra
crioulo).
Em denúncia a esse
uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan 'black is beautiful'. Daí
surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental dessa linguagem é
nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém".
Será que na era
Obama vão inventar "Pé na Presidência", para se referir aos negros e
mulatos americanos de hoje?
A origem social é
outro fator que gera comentários tidos como "inofensivos" , mas
cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que
o picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação
aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:
- A minha
"criadagem" não entra pelo elevador social !
E a complacência com
relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos
homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, "viado",
maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas. Quem se
importa com o potencial ofensivo?
Mulher é rainha no
dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código
masculino, ouve frequentemente:
- Só podia ser
mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!
Dependendo do tom do
cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são
imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:
-Só podia ser loira!
Se a forma de
administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:
- Só podia ser judeu!
A mesma
superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes.
Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de chacota
do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia.
Gosto muito do
provérbio bíblico, legado do Cristianismo: "O mal não é o que entra, mas o
que sai da boca do homem". Invoco também a doutrina da Física Quântica,
que confere às palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade. São
partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.
A liberdade de
escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o
qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável. O preconceito nas entrelinhas é
perigoso, porque , em doses homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os
abismos entre os cidadãos. Revela a ignorância e alimenta o monstro da maldade.
Até que um dia um
trabalhador perde o emprego, se torna um alcoólatra, passa a viver nas ruas e
amanhece carbonizado:
-Só podia ser
mendigo!
No outro dia, o
motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção
do Caetano Veloso é capaz de comover:
-Só podia ser
bandido!
Somos nós os
responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo , no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a
consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que
temos de melhor para dizer uns aos outros.
PS: Fui ao
Ibirapuera num domingo e encontrei vários conterrâneos.
Rosana Jatobá -
jornalista, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Federal da
Bahia, e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da Universidade de São
Paulo.
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